A cada mês de setembro, as ruas de Goiânia fica toda amarela com as folhas caídas da árvore símbolo da capital goiana, o ipê do cerrado. É o fim de um ciclo, quando as pétalas caem, e a árvore se renova para florescer novamente em julho do ano seguinte. A cada mês de setembro, desde 1987, a árvore genealógica da família Alves Ferreira reencontra as pétalas e também a memória da maior tragédia radiológica urbana da história da humanidade.
Era o dia 13 do mês de setembro, quando o asfalto e a terra das ruas estavam forrados de amarelo, que uma cápsula com cloreto de césio –sal obtido por meio do radioisótopo 137 do elemento químico césio– foi aberta em uma casa da rua 57, no setor Aeroporto da capital goiana, antes de seguir para um ferro-velho.
Os dias seguintes foram de dor, ferimentos, sofrimento e morte. Depois, preconceito e incerteza quanto ao futuro das 129 pessoas contaminadas pela radiação. Esse dia jamais chegou ao fim.
A discriminação viaja de Uber
O Hyundai prateado modelo HB, placas de Aparecida de Goiânia, está a duas quadras do aeroporto da capital goiana. Ele é guiado por Odesson Alves Ferreira, 62, cuja mão esquerda exibe as cicatrizes do acidente. Ele perdeu a palma da mão ela foi reconstituída com parte da pele que cobre o abdômen– e as falanges do dedo indicador da mão foram amputadas. Odesson cadastrou-se há um ano na Uber, após seguidas tentativas de empreendimentos barradas pelo preconceito. Suas metas alcançadas são boas: 3.000 viagens com classificação cinco estrelas e comentários elogiosos.
É a memória oral da história do césio-137: conta inúmeras vezes com precisão o que aconteceu desde o dia 13 de setembro de 1987. Tem, na cabeça, os números exatos do peso da peça de ferro-velho, da cápsula de césio, do tamanho e das especificações do que foi enterrado no depósito de Abadia de Goiás.
A precisão das datas impressiona, assim como o bom humor ao contar situações pitorescas dos primeiros dias de tragédia. “O médico pediu que eu tomasse cerveja para que a urina eliminasse a radiação, e eu até achei bom –não precisava justificar a cervejinha para a minha mulher. Mas não adiantou nada, e o banheiro do bar precisou ser demolido porque também recebeu radiação.”
Logo ao entrar no carro, a reportagem pergunta se, dirigindo pelo aplicativo, sofreu discriminação –as lesões não o impedem de desempenhar a função de motorista. “Olha, Marcos”, diz, dirigindo-se ao repórter. “Eu faço aquilo que gosto, dirigir [antes do acidente, Odesson era motorista de ônibus]. Mas tem momentos em que é ruim. Um dia, uma passageira perguntou se não tinha nenhum perigo de ficar no carro com os vidros fechados. Ela me reconheceu e perguntou se não corria perigo de contaminação. Eu disse que não, mas que ela ficasse à vontade se quisesse descer do carro.”
Antes de pilotar o Uber e presidir, por duas vezes, a associação das vítimas, o aposentado tentou por duas vezes investir em comércios de bairro em Aparecida de Goiânia, cidade que faz limite com Goiânia e que abriga a maior parte da família Alves Ferreira, a mais afetada pela tragédia –são 50 pessoas atingidas, além das duas mortes diretamente ligadas ao acidente e outras duas posteriores.
“Fomos chamados de ‘marajás’ porque recebíamos uma pensão miserável do Estado. Entrei em depressão porque não podia mais trabalhar –fui aposentado por invalidez. Montei uma frutaria, e todos os dias ia até o Ceasa buscar tudo fresquinho. Não conseguia vender. As pessoas passavam na porta, iam até outro lugar e passavam com a mercadoria. Acabei com a frutaria, e montamos um bar. Também passavam com garrafa de cerveja vazia, iam no boteco vizinho e compravam. O irmão de um deles me falou: ‘O pessoal não compra cerveja aqui porque acha que está contaminada’.”
Nos anos seguintes, as vítimas fizeram uma via-crúcis para matricularem seus filhos em colégios de Goiânia e de Aparecida de Goiânia. Receberam o não mais de duas vezes cada uma.
Cunhada de Odesson, Luiza Odete dos Santos mentiu por anos sobre a origem da longa cicatriz que exibe no lado esquerdo do pescoço. “Isso aqui, pegando meu rosto, passou a parecer uma mancha de vitiligo, e eu falava que era. E o pessoal me ensinava um remédio. Depois, o tempo foi passando, e eu disse: vou viver. Se o pessoal pergunta, eu falo. E fica assustado, porque ainda existe a discriminação. Pessoas mal informadas ainda acham que a gente transmite radiação.
Lourdes Alves Ferreira, mãe de Leide das Neves, 6 –a menina morta no acidente que virou o símbolo da luta contra a radiação e o preconceito diante das vítimas–, tem a guia médica zerada nas clínicas que frequenta por causa do acidente
“As recepcionistas insistem para saber por que ela é zerada”, diz. “Um dia, uma gritou. E fui pertinho dela e falei: sou obrigada a explicar o porquê? Quando o médico me chamou, ela fez questão de me acompanhar até o consultório. Eu disse que era uma vítima do césio. O tempo todinho que fiquei esperando, se ela não estava escrevendo, estava olhando para mim. Eu era uma pessoa estranha para ela. Já aconteceu de a pessoa, quando soube quem era eu, se levantar de perto de mim.
As vítimas eternas
A Secretaria Estadual da Saúde, por meio do Cara (Centro de Atendimento ao Radioacidentado), ainda hoje monitora 1.292 pessoas, entre radioacidentados, parentes da primeira e segunda geração e funcionários que tiveram contato com os afetados durante os dias de controle da irradiação.
Elas sofreram com problemas físicos e psiquiátricos. Obrigatoriamente, devem visitar o Cara pelo menos uma vez por ano –a frequência já foi mensal e semestral. Em 2016, o centro realizou 5.741 atendimentos –destes, 1.497 no setor de enfermagem e 811 no de psicologia.
Membros foram amputados, braços e mãos receberam enxertos e, em duas vítimas, as feridas provocadas pelo contato com o césio –as radiodermites– ainda não fecharam. Eles vivem às custas de curativos, paliativos às lesões que sofreram e nunca foram curadas. E ainda há o preconceito.
Há um cansaço com essa situação. Um rapaz que está para amputar o pé teve a proposta para tratamento com células-tronco, com uma equipe da Suíça. E ele negou: ‘Estou cansado de ser cobaia. Já não sei quantas tentativas foram feitas, e nenhuma deu resultado. Prefiro ser amputado”, afirma a psicológica Suzana Helou, que atende aos radioacidentados desde outubro de 1987.
A cápsula que causou o acidente era parte de um aparelho radioterapêutico que estava abandonado no terreno em que funcionou o Instituto Goiano de Radioterapia (IGR). Foi utilizado de 1971 até 1985, quando o instituto foi desativado. O equipamento de teleterapia, que continha o césio, foi abandonado naquele ano em meio às ruínas do centro de radioterapia.
A peça foi encontrada no dia 13 de setembro de 1987 por Wagner Mota Pereira e Roberto Santos Alves, que depois a revenderiam para um ferro-velho. A peça, de aproximadamente 200 quilos de ferro e chumbo, tinha 19,26 gramas de césio-137, guardada em um recipiente arredondado, semelhante a uma lata de goiabada. Ela foi levada para a casa de Roberto. No terreno da rua 57, o invólucro de chumbo foi perfurado, e a placa de lítio que isolava as partículas radioativas, rompida.
De lá, a peça foi vendida para Devair Alves Ferreira, então com 37 anos e dono de um ferro-velho na rua 26-A, no mesmo bairro. Ele percebeu o brilho azul que irradiava do recipiente arredondado. Fragmentos de pó saíam da cápsula e foram distribuídos. Assim, o brilho e a contaminação se espalharam pelos bairros adjacentes ao setor Aeroporto.
Dos que tiveram contato com o pó, restaram 46 pessoas diretamente contaminadas. Todas elas passaram por um banho com escovação e vinagre para se descontaminarem, mas a radiação continuou. Suas roupas, seus pertences e suas casas demolidas foram descartados –estão enterrados no depósito de lixo radiológico de Abadia de Goiás (23 km de Goiânia).
Quatro pessoas morreram depois de um mês isoladas no hospital naval Marcílio Dias, no Rio de Janeiro: Leide da Neves Ferreira, 6, Maria Gabriela Ferreira, 37, Israel Baptista dos Santos, 22, e Admílson Alves de Souza.
Todos eles receberam uma dose muito alta de radiação, medidas pelo índice Gy (gray). Para cada sessão de radioterapia para câncer de mama, por exemplo, a dose é de, no máximo, 2 Gy. Devair, que teve contato com uma dose maior (7 Gys), sobreviveu por não ingerir o pó. Leide das Neves, que ingeriu o césio ao comer um ovo cozido com as mãos sujas da substância, absorveu diretamente 6 Gy.
Os corpos tiveram que ser colocados em caixões de chumbo de 700 quilos, e sepultados sob uma estrutura de toneladas de concreto. Os primeiros enterros, de Leide e de Maria Gabriela, sofreram tentativas de impedimento, com blocos interrompendo o tráfego de veículos e pedras e cruzes dos túmulos atiradas contra os veículos que transportavam os caixões, que foram içados por um guindaste para os túmulos.
As estruturas de concreto, que não têm contato com o solo, mas recebem constantemente flores de quem ainda se sensibiliza com a tragédia, hoje são as mais preservadas do Cemitério Parque de Goiânia. “Uma mulher fez um voto [promessa] em nome da Leide para que pudesse engravidar, e conseguir. O nome da menina é Leide, e hoje ela é biomédica”, afirma Lourdes das Neves Ferreira, 65.
A esperança vai florescer.
Presidente da Associação das Vítimas do Césio-137, Suely Lina de Moraes ainda reside na mesma casa da época do acidente, na rua 26. Os fundos da residência dão para o terreno concretado que um dia foi o ferro-velho de Devair –a casa foi demolida depois do acidente. “A diretora trazia meu filho da escola e o deixava na esquina, por medo de contaminar. Esses dias teve um evento no lote do Devair, e a polícia veio para acompanhar. Quando viram que era a rua do césio, não entraram. Não desceram com medo da radiação.” Hoje, não há mais contaminação nas pessoas nem nos lotes.
Suely sorri o tempo todo, mesmo quando se lembra da tragédia. É ela a responsável por controlar as informações e os cuidados com as vítimas do acidente. “Tem os remédios de uso contínuo que não estão disponiveis no SUS. Mas outros custam R$ 200, R$ 100. E não tem.” O Cara afirma que a questão de abastecimento de medicamentos está sendo resolvida pela Secretaria Estadual da Saúde.
Ela tem um mapa, feito à mão, com as vítimas de câncer residentes nos setores Aeroporto e Ferroviário, os mais atingidos pela radiação. Ela aponta 23 casos. “São os moradores daqui, que não saíram daqui. Não vieram fazer pesquisa [epidemiológica, que atesta a incidência maior ou menor de doenças] deles. Nunca foram na fundação, nem sabem onde é. Enquanto as vítimas diretas eram atendidas, eles continuaram aqui. Estavam expostos [à radiação].”
“As doenças causadas pela radiação limitam-se às mortes da época do acidente e aos 22 pacientes com radiodermites. Foram 129 vítimas diretas. Nós podemos afirmar que a doença do césio se limita a esse grupo”, rebate o diretor-geral do Cara, André Luiz de Souza.
“É um discurso permanente deles, de que serão sempre vítimas do acidente. É um fator estressor permanente , de um dia contraírem doenças degenerativas, como câncer e leucemias, ou ter um descendente com deformação genética. Foi o que um pesquisador norte-americano chamou de ‘grávidos da morte’. Tudo é atribuído ao acidente radiológico”, afirma a psicóloga Suzana Helou.
Em dezembro de 2016, Helou entrevistou acidentados e também a população em geral. A pergunta era se os atingidos pela exposição ao césio ainda se consideravam vítimas do acidente radioativo. “Mais de 80% respondeu que sim”, diz. “A maior incidência de resposta é a discriminação que eles acreditam sofrer por parte da população em geral.”
A 23 km do local do acidente, o antigo vilarejo de Abadia de Goiás foi escolhido para receber os restos da tragédia. Ganhou uma disputa de que ninguém queria ser o vencedor –o governo do Pará exigiu, por exemplo, que o lixo radiológico não fosse enviado para a serra do Cachimbo, no interior do Estado. Foram 17 anos para que a estrutura ficasse pronta: dois campos de concreto cobertos de grama com 60 metros de comprimento, 18 de largura e oito de altura. O reservatório contém todas as blindagens e a fonte que continha o césio –nele estão todos os rejeitos de média radioatividade.
Abadia virou cidade de 6.868 habitantes, emancipada em dezembro de 1995. Em sua bandeira, além de um boi e da rodovia BR-060, que liga Brasília à fronteira com o Paraguai, no Mato Grosso do Sul, está o símbolo da radioatividade , representando o depósito com o lixo extraído do acidente. “Ela [a cidade] foi escolhida tecnicamente, com base na geologia local para que não tivesse influência na natureza”, afirma Marco Antonio Pereira da Silva, do CRCN-CO (Centro Nacional de Ciência Nuclear do Centro-Oeste). Os materiais contaminados estão envolvidos em contêineres, e a base de concreto impede que eles contaminem o solo nem o lençol freático, aponta.
O desenvolvimento, afirma, veio em parte pela construção do depósito. “Antes da instalação, havia muito medo de remover o depósito para cá, por falta de informação. Hoje, a população sabe que não há nenhum risco –pelo contrário, isso trouxe desenvolvimento. Abadia entrou no mapa científico do mundo- muita gente vem para cá para fazer pesquisas e desenvolver outras. Não há estigma na cidade –ele é maior em Goiânia do que aqui. Abadia é uma cidade que se incorporou à construção do depósito.”
Sentada no quintal da agradável casa que dá fundos para o antigo depósito de ferro-velho de Devair, Suely Lina de Moraes, como a cidade de Abadia, ainda extrai esperança 30 anos depois de um dia que não parece acabar. “Nós ainda vamos sair dessa. Não preocupo com o que vai acontecer. Digo que vamos nos salvar, não vamos ter câncer. Já sofremos bastante com o césio e a discriminação. Só queremos viver nossa vida. Dar um ponto final.”
Como as pétalas dos ipês que brotam a cada novo setembro, Suely enxerga que a dor irá acabar –e a esperança florescer novamente.
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